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Minha Utopia

Termino de ler "A soma e o Resto – um olhar sobre a vida aos 80 anos", de Fernando Henrique Cardoso, e uma frase não me sai da cabeça: "sem utopias é difícil sobreviver; a história é feita de utopias". Fiquei pensando nisso e descobri que minha vida é um constante embate entre o que penso, o que sou (diante de minhas próprias circunstâncias) e como me relaciono com o material fantasioso que a minha cabeça produz a cada instante. Tenho minhas utopias. Assim que terminei de ler FHC me veio de repente o seguinte pensamento utópico: fiquei imaginando que "A Soma e o Resto" caiu nas mãos de Lula. Por incrível que pareça, o gogó de São Bernardo decidiu dar uma folheada aleatória e desinteressada na obra. Em pouco tempo ele lia o livreto com atenção. Melhor: devorava-o. Depois de terminar, decidiu reler alguns trechos. Depois parou e pensou.Mandou chamar o Luiz Dulci e pediu para ele convidar FHC para um dedinho de prosa. Dois dias depois, os dois ex-presidentes se encontravam. Conversaram bastante. Superaram mágoas passadas. Puseram os pingos nos is e decidiram que a partir daquela conversa promoveriam outras mais densas nos próximos dias.E assim aconteceu. Ao passo de algum tempo ambos estavam convencidos que era a hora de unir o PT e o PSDB. Discutiram uma estratégia de médio prazo e concluíram que valia a pena tentar. Para Lula era fácil. Bastava ele mandar que o partido obedecia. Não havia óbice. José Dirceu estava para ser preso por causa do mensalão. Tarso Genro era um conciliador nato. Dilma a-do-ra-va FHC. Os radicais se contentariam com a manutenção das boquinhas nas estatais. Ou seja: mamão com açúcar.Pelo lado de FHC a coisa era mais complicada. Ele ia precisar de todo seu charme e reunir forças intelectuais para superar os obstáculos previstos. Ele teria que vencer a teimosia de Serra. Teria que contornar a figura sinuosa de Aécio Neves. Teria que buscar entendimentos nas alas mais conservadoras e anti-PT do tucanato para convencer de que era essa a melhor saída política diante do crescente imblogio político que o País poderia viver em futuro próximo.Pior ainda: ele teria que combinar com Lula um discurso bem afinado. Assim que circulasse a proposta de união entre PT e PSDB, os outros partidos, capitaneados pelo PMDB, reagiriam formando uma rede de intrigas com colaboracionismo de parte da mídia para melar o jogo. O mais complicado seria definir como seria o jogo sucessório de 2014. PT e PSDB aceitariam convergir para a candidatura de Dilma com um vice tucano? Como seria depois? Reviveriam na forma (e não no conteúdo) a nova versão da política do café com leite da República Velha, só que num sistema sucessivo de presidentes ora de um partido ora de outro, ao longo do tempo? Lula e FHC acreditavam que tudo era possível, pois lembravam: "a história é feita de utopias". Ambos estavam convencidos de que a coligação capitaneada pelos dois partidos poderia queimar etapas e fazer em uma década o que levaria 50 anos caso permanecesse aquela disputa infantil entre duas maiores agremiações adeptas da socialdemocracia.Tanto Lula como FHC sabiam que tinham que superar a si mesmos neste processo: abrir mão de vaidades, veleidades e de algumas verdades arraigadas pela experiência pessoal de cada um. Além disso, teriam que transpor esse processo de construção de tolerância política para a sociedade, sem perder a perspectiva de aprofundamento da democracia, da liberdade, do igualitarismo, e da lógica da economia de mercado. Não seria fácil. Se fosse, não seria uma utopia. Mas enquanto eu estava envolto por esses pensamentos turvos, vejo o noticiário sobre a CPMI do Cachoeira (e seus personagens principais se esbofando para explicar o inexplicável); acompanho, em seguida, as imprecações de Lula na defesa de seu candidato Fernando Haddad, em São Paulo; leio que FHC está fazendo um circuito de palestras no exterior; vislumbro os desdobramentos do julgamento do mensalão; e, assim,termino o dia lendo uma extensa reportagem na revista Piauí sobre as andanças de Delúbio Soares pelo Brasil fazendo pregação e ameaças contra aquilo que ele considera "justiçamento" da imprensa e mídia burguesas contra seu santo nome. Ele jura que é inocente.Percebo de imediato que no campo político ter utopia está muito difícil. É mais fácil viver em delírio, observando passarinhos da minha janela.

Dante Filho é jornalista