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O Cardápio da Compaixão

O “Mundo econômico”, físico, quantificável, limitado, em 2006 somava uns 60 trilhões de dólares e contemplava um americano comum com uma renda anual média de 30 mil dólares. À mesma época, o “Mundo das Finanças Mundiais” chegava ao fantástico montante dos 500 trilhões de dólares, com a Goldman Sachs – cuja receita líquida em 2007 foi superior ao PIB de muitos países – pagando ao seu CEO (Chief Executive Office) algo em torno de 50 milhões de dólares entre salários, bônus e ações. As diferenças entre os dois “mundos” tão assimétricos podem ser explicadas pelas expectativas e “bolhas” sob a regência de um ente abstrato chamado “Mercado”. Tais diferenças traduzem a força do dinheiro, seja em espécie ou escritural.  O dinheiro, meio de troca, representa valor e riqueza que vêm desde as névoas do Passado, de Hamurabi à banca italiana do Renascimento, do fastígio dos Impérios Britânico e Holandês ao apogeu americano no século XX, à conta da indústria dos seguros, do financiamento das hipotecas e do crédito ao consumidor. Dinheiro, às vezes, está associado à usura, mas nunca é demais lembrar que sem ele as relações econômicas não teriam passado de um tosco e tribal escambo.

Contudo, ao contrário de um antigo comercial de TV, o dinheiro em si não traz felicidade e, muito menos, manda buscá-la para distribuí-la generosamente, como se ela a todos alcançasse, o que, sabemos, ainda é rematada ficção. Nestes albores do Século 21, a despeito das grandes conquistas da Humanidade e da Economia Transnacional e globalizada, o dinheiro ainda não nos permitiu superar o flagelo da miséria e da fome no Mundo e, em que pese a magnitude da Economia Virtual, são gritantes os contrastes entre os números dos mercados financeiros, na casa dos trilhões de dólares,  e, por exemplo,  aquilo que a ONU aufere em seus programas contra a fome, pouco além de 2 bilhões de dólares. Conseqüência disso e ironia, pois, que para os excluídos de todos os quadrantes a felicidade começa no estômago, a fome alcança o bilhão de bocas. A fome, mais do que exibir corpos esquálidos em continentes vários, tem a face cruel da indiferença dos que tem comida à vontade e a preços exeqüíveis para sua renda. Para esses, comida é tradução de prazer; para os despossuídos, um bem essencial à sobrevivência, entretanto raro, quase indisponível. A constatação dessa triste realidade desnuda a impiedade, um componente sombrio da natureza humana,  de se negar alimento a quem dele necessita.

Veja-se a respeito, números da ONU tidos como promissores se cotejados à década de 1980, a mostrarem que os 16% mais ricos detêm 73% da produção mundial – e. claro, produzindo e comprando comida – e que, nos quintais do Planeta, a exclusão é de uma impenitência atroz e a fome uma realidade diária. Infelizmente, ao que parece, os 16% mais ricos, apesar da retórica que brandem, pouco fazem para minimizar um quadro tão desolador. Ao contrário, munidos de pretextos variados, praticam subsídios agrícolas ignominiosos e, a exemplo da União Européia e dos USA, que queimam comida (colza e milho) para produzirem combustível, acabam por aparentar despreocupação com a fome que campeia  por aí. Esses, quando confrontados nos fóruns internacionais, estão mais interessados, isto sim, uns, em preservarem sua supremacia militar; outros, em se resguardarem da carência energética que se anuncia com o colapso do petróleo; outros mais, em sua autonomia alimentar, evidência, a estratégia do Estado Chinês na aquisição de terras agricultáveis na África e na América do Sul; todos, em manterem intocada a supremacia econômica que lhes garanta salvaguardas criminosas para seus produtos primários e mercados cativos para seus manufaturados. É bom que se diga, a escassez de comida é uma falácia conveniente às relações assimétricas entre o centro e a periferia, realçadas pela avidez do “Planeta Finanças”. Saciar a fome ao talante das cotações das comodities é bem diferente do combatê-la no que ela se constitui de chaga social. Saciar a fome em tais situações requer  sensibilidade e compaixão. Já descobrimos essa fronteira moral?

Hélio Silva é advogado e economista