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Os outros somos nós

Ao ler a série “Rosto e história por trás dos números frios dos acidentes de trânsito”, lembrei de muitas ocorrências que presencio no meu dia-a-dia como policial.

A frieza dos números dos acidentes começa com a naturalização do acidente de trânsito. Muitos motoristas o encaram como “natural”. Acidente de trânsito não tem nada de natural. Pode ser comum, mas não “natural”.

Acidentes de trânsito são evitáveis em 99% dos casos e acontecem na maior parte das vezes por falha humana, entre as quais imprudência, imperícia ou negligência do motorista.

A idéia de “normalidade” dos acidentes de trânsito vem da percepção do senso comum de que em uma cidade grande “acidentes acontecem mesmo”, e que se não houve vítimas e tudo aconteceu por uma simples falta de atenção, “está tudo bem” e segue-se a vida registrando cada vez mais boletins de ocorrência. Tudo muito simples.

O problema é que não é assim. Todo acidente de trânsito merece ser pensado e discutido, tanto pelos envolvidos quanto pelas autoridades. Um acidente sem vítima não pode ser encarado como “sem gravidade”. Afinal, mesmo se um acidente não gerou vítimas por um ou outro fator, aconteceu o acidente, e dele poderiam sair pessoas vitimadas não fosse obra da sorte, vez que os resultados de um acidente não são previsíveis. O que percebo, ao atender várias ocorrências de acidentes, é que os motoristas não demonstram nenhuma preocupação em refletir sobre as causas dos acidentes em que se envolveram. Ou melhor, na maioria das vezes, já chegam com um culpado de plantão: o “outro”. Entre os policiais, costumamos dizer que este “outro”, se existisse, já estaria respondendo a um sem-número de processos e pobre-de-marré de tanto pagar indenizações.

Mas, será que este “outro” é assim tão culpado? Quem será este “outro”? O “outro” é sempre aquele que exime um motorista da culpa pelo acidente. Pode ser um “carro que me fechou”, “um carro que parou de repente e eu desviei” ou mesmo o próprio trânsito em si. O “outro”, nos casos mais revoltantes, pode ser a própria vítima, que segundo os relatos, “me fechou e eu bati”, “atravessou na minha frente e eu atropelei”, “estava muito devagar e me fez ultrapassá-la”, entre outras possibilidades. O outro é sempre alguém que não sou “eu”.

É na frieza dos números de acidentes e vítimas no trânsito que estão estes “outros”. São as vítimas da imprudência, da imperícia e da negligência dos milhares de “eus” que dirigem sem responsabilidade. Que bebem “um pouco” e se acham capazes de dirigir, colocando a vida dos outros em risco; que não respeitam sinais de trânsito; que excedem a velocidade; que ignoram que cada “outro” tem um rosto, uma família e uma história triste para deixar.

Muitos motoristas ainda não perceberam que a distância entre ser o “outro” ou ser o “eu” é apenas circunstancial. A luta por um trânsito mais organizado e pelo direito de ir e vir com segurança passa pela conscientização de que os “outros” somos “nós” e de que o rosto e a história envolvidos nos acidentes também são nosso rosto e nossa história.

Como policial, apesar de todo o esforço de fiscalização, considero que faço parte desta triste cadeia de acontecimentos, quando algumas vítimas, ainda dentro das ambulâncias dos serviços públicos, nos pedem para avisar seus parentes ou quando somos obrigados a informar a morte de alguém em razão de acidente. É neste momento que podemos ouvir a voz do “outro”; daquele que até então não tinha rosto ou identidade mencionado nos relatos dos irresponsáveis causadores dos acidentes, mas que tem um pai ou mãe, ou marido, ou filhos, chorando no telefone, nos implorando por lhes dar mais detalhes e mais informações que lhes possam reconfortar um pouco. E muitas vezes, nós não temos essas informações e nem podemos dar o reconforto pedido.

Que missão difícil é dar uma notícia a um pai do falecimento de seu filho. Entregar a ele objetos pessoais encontrados no veículo: camisetas de festas, CDs, livros que um dia fizeram parte de momentos alegres, hoje embalados em um saco fechado. Muitos policiais, nem conseguem cumprir esta etapa e pedem ajuda a outros colegas. A sensação é um misto de impotência, culpa e solidariedade humana que nos dá vontade de chorar junto com pais, mães e familiares. E seguramos esta vontade de chorar porque é preciso ajudar a família, dar orientações, tomar providências burocráticas e administrativas que, se por um lado são necessárias, não trarão de volta a vida do ente querido.

E depois que tudo termina a família vai para casa. O plantão continua com outras ocorrências. Na minha cabeça, porém, permanecem os rostos de olhos tristes e molhados de cada uma daquelas pessoas, como gritos silenciosos de socorro, como dores que poderiam ter sido evitadas, como vidas que poderiam ter sido preservadas.

Marisa Dreys da Silva Xavier é Policial Rodoviária Federal