Veículos de Comunicação

Frágil Memória

Virada de ano é tempo de reflexão. Mexer em antigos guardados ajuda a pensar. Encontrei no fundo das portas mais inacessíveis da prateleira de livros, dezenas de envelopes com o frontispício: “Cartões, ano tal”. Abri os envelopes e fui redescobrindo amigos de outros tempos, relações já esquecidas, gente que se foi da vida ou  para outro lugar do mapa. Achei até cartões não preenchidos, que eu mandava imprimir em 1969 e 1970. Recordações da minha vida e da vida dos outros. Ali, naqueles envelopes, como um arquivo do tempo, de relações, de compromissos. 

Desde que entrou o segundo milênio da era cristã, isso mudou. Os cartões de boas festas foram minguando e sendo substituídos por mensagens eletrônicas. Neste fim-de-ano não recebi mais que meia dúzia deles. E as mensagens eletrônicas, pelo celular e internet passaram a prevalecer. No entanto, cada vez que troco de computador e de telefone, as perco. Na hora de transferir para o aparelho novo – que logo vai ficar velho – só o essencial acompanha e vai-se a memória. Fico pensando na transitoriedade do que é registrado digitalmente, já que sou da geração do papel. Vale o que está impresso(nada a ver com o jogo-do-bicho, que é proibido mas a mesma lei que o proíbe, fecha os olhos para o jogo bancado pela Caixa Econômica…).

Isso vale também para as cartas, lembram-se delas? Cartas de amor, do próprio punho do ser amado, com o perfume do ser amado, papel manchado por lágrimas do ser amado, tinto escarlate dos lábios da mulher amada. As mensagens eletrônicas podem ser instantâneas, podem pôr carinhas, fotos, mas não conseguem ter a personalidade forte de uma carta que vem dentro do envelope. Como no conselho da raposinha ao Pequeno Príncipe, a alegria começa na expectativa da chegada do envelope, que vai crescendo na medida em que o tempo passa; aumenta a ansiedade e se descobre a felicidade. O e.mail tem a instantaneidade do sexo entre os jovens de hoje – perde-se o rito, a espera, a imaginação.

Ou vale para os livros, hoje importados para a memória dos tablets. Um amigo, intelectual, tradutor de livros, com mais de 90 anos, aderiu ao tablet mas não gostou: quando o sono chega durante a leitura, a geringonça lhe cai do colo e faz barulho no chão. Com o livro não acontece isso. Além disso, o livro não necessita de recarga, não dá pau, não tem interferências, nem têm mensagens bestas entrando o tempo todo. A mentira digital não tem o corpo-de-delito da registrada em papel. Outro dia, recebi,  por e.mail, um artigo atribuído a Fernando Pessoa, em que ele se refere à internet – embora tenha morrido em 1935. Se o grande português escrevesse no computador, será que teríamos toda sua obra? Ainda fico com o papel.