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A ouvida de crianças vítimas de abuso sexual

A ouvida da vítima menor trata-se de tema delicado e de grande importância para os profissionais que atuam na intervenção, no tratamento e na responsabilização dos casos de abuso sexual infantil.
É inegável a falta de credibilidade ao relato da criança vítima de abuso, o que não acontece somente entre os familiares e a sociedade em geral, mas também no meio judicial, sob a justificativa de que a criança mente, fantasia, é suscetível a sugestões e não possui capacidade de separar a realidade de seus desejos sexuais.
Esse descrédito, entende Veleda Dobke, trata-se de negação dos adultos da realidade do abuso sexual como forma de defesa psicológica, em virtude de sentimento de vergonha e de incapacidade de admitir que tamanha violência possa ser praticada contra seres tão indefesos. A criança, como cidadã especialmente tutelada pelo Estado, não pode ser considerada pelo sistema legal e pela sociedade em geral como insuscetível de relatar a verdade. É certo que se trata de ser humano em fase de desenvolvimento físico e psíquico, incapaz de responder legalmente por seus atos, mas desacreditá-la significa deixar de dar-lhe atenção, proteção e cuidados que lhe são devidos por direito.
Há algumas características presentes no relato da criança que sofreu abuso sexual, as quais devem ser observadas:
 1. Em relação aos conhecimentos sexuais, como característica do relato verídico de abuso, estes transcendem aos normais inerentes à idade que possui a criança, tornando-a hipersexuada.
 2. O relato é sempre detalhado, descrevendo os estágios abusivos e o comportamento do abusador. A doutrina apresenta como exceções a essa característica os casos em que as crianças são muito pequenas ou sofrem grande efeito traumático. Chama-se a atenção para relatos curtos e “decorados”, que devem ser analisados com atenção, no sentido de que podem ter sido influenciados. Convém observar a tendência natural das crianças de serem menos detalhistas ao relatar os fatos, o que não significa que não estejam falando a verdade, mas tão-somente que não possuem a mesma capacidade de memorização que os adultos. Ademais, a falta de detalhes no relato do infante não corresponde, necessariamente, à não-ocorrência do abuso, pois, como já referido, no caso extremamente traumático pode implicar esquecimento.
 3. Também é importante esclarecer sobre fantasias, vulnerabilidade das crianças a sugestões e mentiras. Nesse sentido, as crianças podem fantasiar; no entanto, essas fantasias não são sobre o fato principal, mas sobre fatos secundários, ou seja, a criança não fantasia sobre o fato de ter sofrido o abuso, mas sobre as circunstâncias que o rodeiam. Isso porque não é possível o infante fantasiar sobre algo que não integra a sua experiência. As crianças também são vulneráveis a sugestão, mas isso ocorre normalmente pela negação, não ao inventar fato inexistente.
 4. Quanto à mentira, crianças com mais de quatro anos têm capacidade de distinguir entre verdade e mentira e podem ter a ideia de que mentir é “feio” ou errado; então, se mentem, não conseguem sustentar a mentira por muito tempo e acabam por entrar em contradição.
 5. É importante observar que a linguagem apresentada no relato deverá ser compatível com o desenvolvimento que possui a criança e com uma visão infantil dos fatos, isto é, a criança deverá apresentar linguagem própria de sua idade, pois o uso de linguagem incompatível indica influência adulta, bem como sua visão deverá ser própria de uma criança.

Paulo César Ribeiro Martins é doutor em Psicologia pela PUCCAMP e professor da AEMS/UEMS/FIPAR