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Opinião

Reforma Agrária é Exclusão no Bolsão

Nos últimos anos o que se tem no Bolsão é a ausência do Estado

*Rosemeire A. de Almeida 

O título deste artigo bem poderia ser um equívoco, assim eu desejaria, mas no máximo é paradoxo. Ele é resposta à reportagem veiculada pelo Jornal do Povo, no dia 11/02/2015, intitulada: “Incra encontra irregularidades em 976 lotes de assentamentos do Bolsão”.

Como pesquisadora da vida e do trabalho nos assentamentos no recém criado Território do Bolsão, busco exercer o que ensino em sala de aula: é tarefa do pesquisador fazer a voz dos assentados chegar a outros públicos e espaços; não é falar pela boca dele, mas, traduzir sua vida – neste caso Severina, infelizmente.

Primeiro, é preciso registrar o ponto de partida desta discussão, qual seja: a defesa inconteste da atualidade da Reforma Agrária no Brasil como processo perene porque a concentração da terra não recua, aliás, o índice GINI tem demonstrado que ela avança. Certamente é nosso maior dilema na construção da democracia, uma vez que a concentração da terra é a expressão do domínio de uma classe sobre um bem finito. Senão, vejamos o caso de Três Lagoas: os estabelecimentos acima de 1.000 ha representam 18,7% do total, porém dominam 74,7% da área. Neste município, o INCRA implantou dois assentamentos, diante desta concentração da terra é um “pingo no deserto”.

Segundo, que a distribuição de terra é apenas o ponto de partida da Reforma Agrária, pois como dizia o saudoso Plínio de Arruda Sampaio: “Reforma Agrária é feijoada completa”. Entendimento já preconizado pela Constituição de 1988 no art. 187 sobre política agrícola e nas Leis que dispõem sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à Reforma Agrária.

 Nos assentamentos citados na reportagem (20 de Março, São Joaquim e Canoas) a situação é crítica: após cinco anos de implantação, a maioria das benfeitorias não foi realizada para consolidação dos projetos, a construção das casas é em conta gotas em meio às denúncias judiciais envolvendo até mesmo funcionários do INCRA; a luz não há sinal no túnel – para ser fiel com a realidade, a energia deu ares em 2015 no assentamento “20 de Março”  –; crédito para a produção não liberado, nem mesmo a sonhada vaquinha que garanta o leite das crianças ou coisa que o valha.

O caso do assentamento Canoas é exemplar, há pouco tempo atrás nem estradas de acesso interno! Não raro nesses tempos de contrarreforma agrária coube aos acadêmicos e professores da UFMS/Campus de Três Lagoas substituir a pesquisa pela arrecadação de alimentos para as famílias assentadas. Não cabe neste espaço contextualizar este processo, mas o desmonte da Reforma Agrária é estrutural, diria mais, se tornou um projeto político.

Estas ressalvas quanto ao conteúdo da Reforma Agrária não são firulas, mas caminho de resgate do necessário diálogo construtivo que deve permear a presença do INCRA nos assentamentos do Bolsão, especialmente no núcleo de Selvíria e Três Lagoas – alvo das ações de regularização dos lotes. A presença do Estado nos assentamentos é decisiva, os próprios assentados clamam por ela, não como ente punitivo, mas executor das tarefas inerentes ao processo de Reforma Agrária. É por meio desta legitimidade que os descaminhos serão corrigidos.

Nos últimos anos o que se tem no Bolsão é a ausência do Estado, do INCRA, bem por isso avançam as ações sociais das papeleiras nas áreas de Reforma Agrária – assunto que merece outro artigo cujo título poderia ser: “Privatização da Reforma Agrária”. Inclusive, se o assunto é “fiscalizar”, o que dizer dos assentados que prestam serviço nos eucaliptais, estariam fora da lei? Sim, porque grande parte dos que resistem nos lotes o fazem em consequência do trabalho fora do lote.

Mas nem tudo é drama, há esperança e com ela se faz muita coisa: festas, hortas, educação, agroecologia. Sim, há práticas bonitas em andamento com todas as dificuldades próprias das ações a contrapelo, exemplo é a recuperação das nascentes no assentamento “São Joaquim” e o projeto das sacolas agroecológicas no “20 de Março” – projetos coordenados pela UFMS/Campus de Três Lagoas.

 Debater as causas da “irregularidade dos lotes” é fundamental, do contrário se corre o risco de reforçar os clichês da Reforma Agrária que tão bem conhecemos: “não dá certo”; “assentado pega terra pra vender”; “reforma agrária é coisa do passado”. Estes são lugares-comuns, é o discurso das frases feitas em que a Reforma Agrária perde o sentido. É preciso coragem para desnudar o conteúdo da (não) reforma agrária e vontade política para criar o diferente.

Há aqueles que defendem a existência de dois lados da questão, mas insisto que só existe um lado – quando estamos diante do não cumprimento das ações da Reforma Agrária prevista na Lei, o lado da exclusão dos beneficiários!