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Três Lagoas

?Lei de adoção já funciona em TL e é referência?

Confira a entrevista com a Promotora de Defesa da Criança e do Adolescente, Ana Cristina Carneiro Dias

O Senado Federal aprovou na semana passada a nova Lei Nacional de Adoção que seguiu para a aprovação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O objetivo é acelerar os processos e impedir que crianças e adolescentes permaneçam mais de dois anos em abrigos públicos. De acordo com o novo texto, a situação de meninos e meninas que estejam em instituições públicas ou famílias acolhedoras deve ser reavaliada a cada seis meses, para que o juiz decida pela reintegração familiar ou pela colocação para adoção.

Para tratar do assunto o Jornal do Povo entrevistou a jovem e competente Promotora de Defesa da Criança e do Adolescente, Ana Cristina Carneiro Dias. Aos 31 anos de idade, já possui cinco anos dedicados à defesa do que considera o seu “xodó”, que é defender os direitos da criança e do adolescente. Defende também os direitos do cidadão e atua em processos que envolvem o Juizado Especial Criminal. Seu tripé de atuação é referente ao cargo de promotora de Justiça do Ministério Público Estadual que exerce desde seus 23 anos de idade. Já atuou em Caarapó, Itaquiraí, Eldorado, Maracaju e por último em Três Lagoas. Instalou-se no município no ano de 2004 e desde o início assumiu varas ligadas à infância e juventude. Durante a entrevista tratou da situação de adoção, afirmando que ela já funciona muito bem no município, antes mesmo da aprovação da Lei pelo Congresso. Além disso, criticou a incapacidade de pessoas que ocupam cargos muito importantes em esferas públicas de grande importância. “Enfrento dificuldades com funcionários em todos os sentidos. Tanto funcionários municipais quanto estaduais. A falta de capacitação e de competência para o cargo é muito alta”, destacou.

Jornal do Povo: A promotora acredita que essa nova lei será totalmente aplicável?

Ana Cristina Carneiro Dias: Esse prazo máximo de dois anos de abrigamento não será obedecido em algumas circunstâncias especiais. Em Três Lagoas temos uma adolescente que está no abrigo há 17 anos. Sem família ou pessoas próximas. Ela não será adotada. Esta é a realidade. Com relação à não poder separar irmãos, temos um exemplo desses. Três irmãos adolescentes abrigados de 12, 13 e 14 anos. Esses irmãos não possuem perfil nenhum para serem adotados. Pela idade, cor ou situação social.

Temos um outro caso de quatro irmãos, um de 13 anos, um de 16, um de 12 e um de 6. Que casal vai adotar os quatro de uma vez? Poderíamos até arrumar as famílias em Três Lagoas que fique com cada um, mas não quatro de uma vez.

A legislação é muito linda, mas na prática não é tão linda assim. No caso citado esse irmão de seis anos, que seria muito mais fácil de ser adotado, vai pagar o preço por ter irmãos. Creio que a lei será bem vinda com outras cidades que não tem comprometimento com a causa, em Três Lagoas não muda muita coisa. Acredito que essa lei só dará certo no âmbito de repassar a responsabilidade de prazos para quem trabalha com essas crianças e adolescentes.

JP: Essa lei vai mudar algo Três Lagoas?

AC: Não, já temos feito este aceleramento. O Judiciário tem cumprido com isso. Mas existem alguns casos que não há como cumprir este prazo. Temos criança de 11 anos, sem nenhum perfil de adoção e que ainda não apareceu ninguém interessado. Inclusive abrimos várias vezes o Cadastro de Adoção e nunca aparece ninguém.

JP: O que dá lentidão a esse processo de adoção?


AC: Podemos afirmar que a lentidão hoje em Três Lagoas, se deve ao perfil das crianças colocadas para adoção não serem os mesmos que os casais querem. Somente. A lentidão judicial por parte do Ministério Público não existe. No máximo em 20 dias tenho uma posição. Ou é adoção, ou é reestruturação familiar.

JP: Qual é o perfil de crianças exigidas por pais adotivos?

AC: A exigência, na maioria das vezes, é que a criança seja menina, recém-nascida e branca. Em nossa Comarca já tivemos crianças de 5 e 6 anos adotadas, mas é um caso muito raro.


JP: O processo burocrático para a adoção de uma criança ou adolescente continua lento?

AC: Temos feito de tudo para que esse processo seja o mais ágil possível. Posso dizer que Três Lagoas é referência em adoção no Estado. A Promotoria de Justiça e a Rede de Proteção, que envolvem Conselho Tutelar e o Poder Judiciário têm feito de tudo para agilizar o processo. Ao abrigarmos uma criança, analisamos a família, e dentro de no máximo 20 dias a Promotoria tem um posicionamento. É ajuizada a ação para que ou essa criança volte para a família ou vá para adoção. Em Três Lagoas não existe nenhuma criança abrigada que não tenha um procedimento judicial com esses pedidos por parte do Ministério Público. O Judiciário decide prontamente.

JP: Explique o motivo da adoção ser referência em Três Lagoas.

AC: Depois que fizemos a campanha da Adoção Legal diante de uma parceria entre Ministério Público, Poder Judiciário e outros órgãos da criança envolvidos, montamos uma rede de proteção. Qualquer adoção irregular é comunicada imediatamente para que o MP tome providências. Para se ter uma idéia, do começo do ano até hoje nós já interceptamos duas adoções ilegais que foram para fora de nossa cidade. Casais que vieram para o município para buscar crianças recém nascidas, seja por pagamento aos pais biológicos, por amizade ou conhecimento. A Rede de Proteção detectou esse esquema e rapidamente agimos com busca e apreensão dessas crianças. As crianças foram para o Cadastro de Adoção, isso para mim é um respeito aos cadastros de nossa Comarca que acreditam no Judiciário.

JP: A maioria dos pais adotivos são do município?

AC: Há muita gente de Três Lagoas que já adotou uma criança. No cadastro nacional, a prioridade é para casais do município que a criança está abrigada. Casais de fora só adotam quando não se têm nenhum casal do município que queiram a criança. A prioridade é manter a criança em seu local de origem.

JP: Atualmente quantas crianças e adolescentes existem abrigados no município?

AC: São dois abrigos. No Poço Jacó temos 54 abrigados e na Casa Acolhedora temos 7. Um total de 61 abrigados. O Poço Jacó está com muitas crianças, pois está ausente em Três Lagoas um juiz titular da Vara da Infância e Juventude. Isso acabou gerando uma demanda grande para o Judiciário decidir sobre o futuro dessas crianças. Espero que com a vinda da juíza que está de licença maternidade, prevista no final do mês, as coisas voltem à sua normalidade.

JP: Na sua opinião, qual o principal problema de Três Lagoas, considerando todas as esferas de poder baseada em seu repentino crescimento?

AC: São tantos os problemas, mas o que mais enfrento no meu cotidiano é a falta de capacitação das pessoas que estão em órgãos muito importantes, com atribuições muito importantes. Enfrento dificuldades com funcionários em todos os sentidos. Tanto funcionários municipais quanto estaduais. A falta de capacitação e de competência para o cargo é muito alta.

JP: Qual o principal problema enfrentado pelas promotorias que você defende?

AC: Enfrento muitos problemas na área da Cidadania. Em matéria de Saúde se você escutar o usuário ele tem razão, se você escutar a administração, ela também tem razão. É um problema complexo, que não é só em Três Lagoas que acontece e têm me custado muitos atendimentos na Promotoria. Pessoas vêm até aqui para pedirem medicamentos, inclusive muitas pulam a rede municipal. As pessoas acreditam que a Promotoria é um órgão onde eles pegam uma senha para pegar o medicamento. Não é. Então isso me tomou um tempo no início, mas agora tenho focado a área da Cidadania pelo todo. Eu não quero que o senhor José seja atendido mais rápido porque ele precisa de um eletrocardiograma. Eu quero que todos os Josés sejam atendidos de forma igual. Não quero que somente aqueles que vêm até a Promotoria seja atendidos de forma diferente das pessoas que não tem conhecimento de nossa atuação.

JP: Algum caso interessante?

AC: Já teve um atendimento de uma senhora que veio chorar no meu ouvido porque a Secretaria de Saúde tinha mandado ela matar as galinhas dela por leishmaniose. Ela veio pedir para eu não deixar matarem as galinhas dela. Fiquei sem jeito. Queremos que venham nos procurar com casos graves. Denúncias de abuso sexual, maus tratos contra crianças, adoção ilegal e funcionários corruptos. Hoje a Promotoria está virando lugar de a pessoa vir chorar pela morte da galinha.

JP: Quem é o culpado?


AC: Existe uma sobrecarga, essa sobrecarga é devido aos órgãos públicos estarem ineficientes. Órgãos públicos, por questões políticas, estão ficando sem fazer sua obrigação e o promotor deve se encarregar de fazer isso. Não sei onde vamos parar. Hoje Três Lagoas têm número suficiente de promotores, mas cada vez mais sobrecarregados. Somos em seis.

JP: Porque o seu “xodó” é a promotoria da infância e juventude?

AC: Gosto porque é um trabalho na promotoria que você vê começo, meio e fim feliz. Já trabalhei em vários casos que a criança estava desnutrida, doente, triste e hoje vem aqui me visitar com o casal que a adotou, e ela é outra criança. A intervenção da promotoria e do conselho tutelar é tudo para aquela criança.

JP: Começo, meio e fim feliz?

AC: Sim. Vejo começo, quando entramos com a ação, fazemos o abrigamento. Abrigar não é bom. Mas vemos o processo, lidamos com o processo, lidamos com provas, nos convencemos. Depois de tudo isso chegamos ao parecer final baseados no trabalho de uma equipe composta por um psicólogo e um assistente social. Fazemos o pedido para o juiz e o convencemos de que o caso é real. E o judiciário manda a criança para a adoção. A adoção vai para um casal que tem condições de receber essa criança e nos traz um final feliz. Não que esse seja o fim para aquela criança, mas é o fim do processo que ela viveu e o começo de uma nova vida.

JP: Em cinco anos à frente dessa promotoria, qual a principal mudança que você observa?

AC: Assim que assumi essa promotoria no município, lembro que as pessoas ficavam apreensivas quando dizíamos que se os cuidados não mudassem com a criança, ela seria tomada. Hoje isso é muito difícil de acontecer. Já tive casos de mãe que veio até a promotoria e disse – a senhora dá um jeito que não quero essa criança -. Depois saí na rua, encontrei com essa mesma mãe, dando risadas. Percebi que ela estava aliviada. Esta é a realidade. A criança está no abrigo, com 12 anos e a mãe sumiu. Ainda escuto pessoas que deveriam defender a população, eleitas pela população, criticando o Conselho Tutelar e a Promotoria por abrigar. Não estamos falando de mãe que cuida de seu filho. Estamos falando de mãe que não cuida, que maltrata. Concordo que a mãe que cuida de seu filho é uma coisa sagrada de Deus. Mas aquela que não cuida, para mim não é sagrada, nem é de Deus. As pessoas falam que a mãe está triste e depressiva, por isso trata mal. Mas eu digo que nossa prioridade não é a mãe. Nossa prioridade é a criança e o adolescente.