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Entrevista

Sem cumprir ODS, municípios podem amargar futuro de caos

Especialista em gestão pública alerta prefeitos sobre os impactos da atração de investimentos e necessidade de equilibrar as contas

Sandro Omar > sugere amplo debate sobre novos investimentos e a área social - duda schindler/cbn-cg
Sandro Omar > sugere amplo debate sobre novos investimentos e a área social - duda schindler/cbn-cg

Alcançar até o ano de 2030 os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) – estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU)  – este é atualmente um dos maiores desafios do poder público, principalmente para os pequenos municípios com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Os ODS reúnem 169 metas relacionadas à erradicação da pobreza, proteção do meio ambiente, saúde e bem-estar, educação de qualidade, entre outros, que só poderão ser alcançadas no Brasil com apoio do setor privado. Em Mato Grosso do Sul a adesão desse setor é ainda mais fundamental na análise do pesquisador e consultor em gestão pública, Sandro Omar de Oliveira Santos. O especialista alertou para um futuro de caos no setor público, caso os gestores não busquem de forma acelerada por alternativas que garantam o cumprimento dos ODS. E em MS, quase a metade dos municípios (37 dos 79) gastam mais do que arrecadam. O levantamento referente ao primeiro semestre deste ano é da Confederação Nacional dos Municípios. 

O Leste do Estado é chamado de “Vale da Celulose”, com indústrias instaladas, outras se instalando, florestas que não param de expandir. Qual é a sua avaliação sobre o cenário atual dessa região? E o que podemos esperar?
Sandro Omar-  Nós não podemos ser os arautos do que é ruim, mas emerge uma necessidade bastante urgente com relação ao passivo que essas obras podem  nos deixar.  Nós temos alguns exemplos de décadas atrás, como o caso de Foz do Iguaçu. Com a construção de Itaipu e da Ponte da Amizade, aquela região se transformou. Diríamos que hoje ali seria uma verdadeira torre de Babel, com chineses, árabes, paraguaios e brasileiros. Os impactos culturais e sociais são evidentes, e aí nós temos que nos preocupar com as questões do desenvolvimento sustentável. É importante que ao se buscar as licenças para a implantação  desses empreendimentos, o meio ambiente seja priorizado. Então, é natural que se peça para esses empreendimentos a licença ambiental, mas ninguém faz uma prospecção, uma projeção dos demais passivos. E hoje o conceito de desenvolvimento sustentável moderno pressupõe o desenvolvimento econômico sustentável, o ambiental e o social.  Durante aquele boom das obras em Três Lagoas, do complexo de celulose, da fábrica de fertilizantes, a cidade chegou a ter  mais de 30 mil pessoas circulando, além dos moradores. Com falta de moradia, falta de assistência médica. E é o que está acontecendo com Ribas do Rio Pardo agora. As cidades não estão preparadas para receber esse boom de pessoas.

No Brasil isso é recorrente, mas por que não há o caminho inverso? Primeiro oferecer os serviços básicos e depois a indústria se instala na cidade?
Sandro Omar- Essa é uma temática dos meus estudos, do porquê não obedecemos primeiro essa questão social. Precisamos fazer uma análise bastante detalhada sobre as necessidades dos equipamentos públicos, para sabermos até onde é possível absorver esse volume de pessoas, fazendo  esse cotejamento em conjunto do poder público com as empresas. Tudo isso na fase de planejamento, não quando a indústria já está instalada.

O senhor dá consultoria aos municípios. Por que esse planejamento não é feito antecipadamente?
Sandro Omar- É uma pergunta para a qual eu não tenho a resposta. Num primeiro momento, o administrador público que está à frente da gestão tem uma preocupação na geração de emprego, de melhorar a renda das pessoas,  de buscar fazer com que os cofres públicos sejam supridos com uma receita extra, porque nós sabemos as dificuldades que eles vêm enfrentando atualmente,  face ao comprometimento das receitas. Mas, eu vejo que boa parte desses administradores enxergam o aqui e agora. Eles se voltam para aquilo que é mais emergente. E cabe a nós, cidadãos, buscarmos questionar esse tipo de iniciativa. Hoje, boa parte dos municípios tem as suas receitas atreladas a determinados percentuais. 60% da receita corrente líquida hoje é vinculada a pagamento de pessoal; 54% dos quais para o pessoal da administração pública  e 6% que são direcionados para o Legislativo. Nós também temos aquele comprometimento mínimo das receitas  com educação e saúde que chegam a um patamar mínimo de 40%.  Então, sobra o quê para o município? 10% do que ele arrecada para a manutenção da máquina,  para as despesas que são emergentes e quase nada para investimento. Quando um prefeito busca um empreendimento de grande porte,  ele está preocupado com a primeira receita que vai entrar, que é de ISS (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza) das obras.  

Com isso, não tem como pensar no futuro, nos problemas que virão, certo?! 
Sandro Omar-  Correto. Só que aí vem um problema: os Objetos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que estão atrelados à Agenda 2030,  do qual o Brasil é signatário. São 17 ODS ao total e eles se vinculam às questões de cidadania, de igualdade, de gênero, social, de educação ambiental, etc. O Governo Federal está preparando um instrumento normativo que obriga aos demais entes, não só os públicos, mas também os privados que dependem de recursos públicos, a se moldarem e cumprirem esses 17 ODS.  Se eles não cumprirem até 2030, eles estarão impedidos de receber recursos na forma de transferência voluntária. Só poderão receber o que for de natureza impositiva, como as emendas individuais. Então é um ponto muito grave que pode chegar se os municípios não cumprirem.

E qual é a saída para essas prefeituras? 
Sandro Omar- Eu acredito no diálogo.  Esses problemas que são facilmente identificáveis podem ser objeto de negociação agora com as empresas.  Essas empresas, por conta da legislação tributária,  podem investir um percentual da sua receita em ações sociais no município. E muitas vezes essas grandes empresas, elas vêm aqui, se instalam  e acabam contribuindo com essas ações sociais em outros estados. Nós teríamos que fazer um amplo debate a respeito disso.

Esses estudos que o senhor tem feito, eles chegam até os gestores públicos?   
Sandro Omar-  Eu comecei esses estudos há uns dois anos. Eu sou engenheiro, sou advogado e fiz mestrado em letras.   E no mestrado em letras a gente consegue abordar algumas temáticas relacionadas  às práticas sociais, à cultura, às questões ambientais. A gente trata o homem hoje em termos de geografia humana.  E aí eu comecei a perceber esses movimentos por quais passaram esses municípios em razão desses ciclos e os problemas sociais que restaram. Eu quero fazer um debate mais amplo com relação a isso, até para que eu chegue a uma conclusão efetiva sobre de que forma nós podemos,  do ponto de vista constitucional, preservar essas questões que não são caras. A Constituição estabelece que toda e qualquer forma de desenvolvimento econômico  tem que ser sustentável. E essa sustentabilidade hoje é muito clara.  E de que forma isso está sendo respeitado? Então, eu quero levar esse debate agora do que eu estou estudando  para a esfera jurídica. Eu estou tomando muito cuidado com relação a esses estudos.  

Um levantamento da Confederação Nacional dos Municípios apontou que aqui em Mato Grosso do Sul  37 municípios gastaram mais do que receberam nesse primeiro semestre. O que acontece? 
Sandro Omar-  Cada município tem as suas especificidades. Alguns têm uma receita própria, vamos chamar de próprias arrecadações de ISS e de IPTU, que lhes dão um suporte diferenciado no caixa.  Outros, como os municípios que são próximos à fronteira, em que o nível de assistencialismo tem que ser um pouco maior  em razão dos indicadores de pobreza.  Então o município acaba assumindo uma função muito mais assistencial do que de incentivar e promover o desenvolvimento com novas frentes de trabalho,  geração de renda. Há um problema que deve surgir nos próximos meses, que é o ganho real do salário mínimo.  Muitos desses municípios têm a maior força de trabalho de servidores públicos  e têm os IDHs menores.  Eles acabam atrelando as suas obrigações de pagamento  a esse indicador de salário mínimo, que não é legal para todo mundo.